Documento:20002328049
Poder Judiciário
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO

Apelação Cível Nº 0026313-43.2016.4.02.5109/RJ

RELATOR: Desembargador Federal ALCIDES MARTINS

APELANTE: UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO (RÉU)

APELANTE: INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE - ICMBIO (RÉU)

APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (AUTOR)

EMENTA

ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AMBIENTAL. PARQUE NACIONAL DO ITATIAIA. DESLIZAMENTO DE TERRA. RESPONSABILIDADE CIVIL. REMESSA E APELAÇÕES IMPROVIDAS.

1. Trata-se de remessa necessária, que considero existente, e de apelações interpostas pelo INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE – ICMBIO E UNIÃO, objetivando a reforma da sentença (evento 333, 1º grau) que, nos autos da ação civil pública ajuizada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL – MPF contra a União Federal, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Município de Itatiaia, objetivando a adoção de medidas para evitar um deslizamento de terra no Parque Nacional do Itatiaia, que pode prejudicar o sistema de captação de água do município de Itatiaia/RJ, julgou o pedido nos seguintes termos: “(...) CONFIRMO A TUTELA ANTECIPADA E JULGO PROCEDENTES OS PEDIDOS para: a) Homologar o acordo firmado entre as partes em 08/11/2017, reconhecendo a responsabilidade solidária dos réus. b) Determinar que o Município de Itatiaia conclua a primeira etapa do acordo, apresentando resposta sobre a atualização do projeto da empresa SANEPROJ Ambiental, incluindo a possibilidade de aproveitamento do projeto à luz dos problemas e plano de necessidades apontados pelo ICMBio. Caso o aproveitamento do projeto elaborado não seja viável, deve apresentar em juízo um novo projeto de obras que contemple as necessidades de reparação de irregularidades e prevenção de dano ambiental apontadas pelo ICMBio. Prazo: 30 (trinta) dias.

2. Consoante a leitura da exordial, no dia 9 de novembro de 2015, teve início um grande processo de movimentação de solo e aterro no interior do Parque Nacional do Itatiaia (PNI), junto à margem do rio Campo Belo, próximo às estruturas de um dos pontos principais de captação de água do município de Itatiaia/RJ, no local conhecido como Lote 13 do Ex-Núcleo Colonial de Itatiaia, na Estrada da Usina Velha, em Itatiaia/RJ.

3. Logo em seguida a ocorrência do sinistro, o Prefeito de Itatiaia solicitou uma vistoria técnica ao Departamento de Recursos Minerais do Rio de Janeiro (DRM-RJ), a fim de verificar a gravidade da situação e as medidas emergenciais necessárias para evitar a ocorrência de um grave desastre ecológico no local, bem como a interrupção do abastecimento de água do município (Evento 1, OUT2, Página 18, 1º grau).

4. Após a verificação in loco da situação e avaliação das condições de estabilidade da grande massa de terra deslocada, o DRM-RJ recomendou à Prefeitura de Itatiaia a adoção de uma série de medidas emergenciais necessárias apenas para evitar que novas infiltrações levassem toda a massa abaixo (atuação sobre os agentes deflagradores do movimento de massa), sendo tais medidas executadas em parte pelo município.

5. No entanto, após nova manifestação técnica do DRM-RJ, verificou-se que essas medidas não seriam suficientes para sanar o risco de deslizamento e, consequentemente, de um desastre de grandes proporções, de modo que deveria ser realizado um projeto técnico para a contenção dessa massa, conforme especificado no relatório do órgão; ainda que os agentes deflagradores fossem controlados, a massa já se encontrava desestabilizada e individualizada (Evento 1, OUT3, 1º grau).

6. Em virtude disso, o MPF ingressou com a presente ação civil pública e, após a fase instrutória, foi prolatada a sentença ora recorrida, que reconheceu a responsabilidade solidária dos réus e determinou a conclusão da primeira etapa do acordo pelo Município de Itatiaia, que deveria apresentar uma resposta sobre a atualização do projeto da empresa SANEPROJ Ambiental, incluindo a possibilidade de aproveitamento do projeto à luz dos problemas e plano de necessidades apontados pelo ICMBio (Evento 333, 1º grau).

7. Inicialmente, não prospera a tese da União de ilegitimidade passiva ad causam.

8. Consoante disposto no art. 23, incisos VI e VII, da Constituição da República, é de competência comum da UNIÃO, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios "proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas" e "preservar as florestas, a fauna e a flora".

9. Ademais, o Parque Nacional do Itatiaia é área de domínio da União, sendo esta, portanto, responsável direta pela sua proteção e recomposição, ainda que o o causador direto do dano tenha sido o ente municipal.

10. Assim, a União é responsável por adotar, diante da omissão do Município de Itatiaia, as medidas emergenciais necessárias para evitar danos ambientais de graves proporções no interior da unidade de conservação.

11. Sob outro prisma, a condenação dos entes públicos se deu na medida do que foi estabelecido no acordo homologado em juízo no evento 163 do 1º grau, segundo o qual: "A) O Município de Itatiaia compromete-se: A.1) apresentar em juizo, em 10 (dez) dias cópia do processo administrativo já instaurado para que seja dado cumprimento integral a Decisão judicial. A.2) o Município de Itatiaia compromete-se a informar este juízo todas as etapas do citado processo licitatório cujo escopo é a confecção do projeto da obra. A.3) o Município de Itatiaia compromete-se apresentar em juízo tão logo o projeto lhe seja entregue e aprovado. B) Uma vez apresentado o projeto, os demais réus e o autor, dele tomando ciência, deverão se manifestar nos autos acerca de seu conteúdo em 30 (trinta) dias. Prazo comum. C) A União compromete-se a, em 45 (quarenta e cinco) dias a contar da homologação do laudo, apresentação do convênio ou outro instrumento hábil para tanto de sorte a autorizar o Município a deflagrar o processo de licitação para a execução da obra. Prazo comum. D) O Município de Itatiaia compromete-se a dar início ao processo administrativo voltado a execução da obra tão logo seja intimado do instrumento citado no item anterior (C), devendo informar a este juízo acerca do andamento, da mesma forma como estipulado no item (A.2). V- O descumprimento de qualquer compromisso aqui entabulado levantará a suspensão da imposição de multa, sem prejuízo de outras medidas mais constritivas a serem eventualmente fixadas por este juízo. Saem os presentes intimados".

12. No mérito, em matéria de responsabilidade civil ambiental, o Brasil apresenta uma evolução legislativa peculiar e bastante positiva em termos de direito comparado.

13. Em uma primeira fase, o arcabouço normativo fundamental para dirimir questões envolvendo o tema da responsabilidade civil na seara ambiental era o Código Civil de 1916, onde a pretensão derivada do dano ambiental encontrava amparo no regime jurídico fundado na culpa (art. 159), apresentando como excludentes a legítima defesa, o exercício regular de direito, o estado de necessidade, o fato da vítima e o fato de terceiro, bem como o caso fortuito e de força maior e a cláusula de não indenizar.

14. Com o advento da Lei nº 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente), foi positivado em nosso ordenamento o grande marco evolutivo no regime jurídico aplicável às hipóteses de dano ambiental, estabelecendo o art. 14 do referido diploma legal, in verbis: “Art 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:  I - à multa simples ou diária, nos valores correspondentes, no mínimo, a 10 (dez) e, no máximo, a 1.000 (mil) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional - ORTNs, agravada em casos de reincidência específica, conforme dispuser o regulamento, vedada a sua cobrança pela União se já tiver sido aplicada pelo Estado, Distrito Federal, Territórios ou pelos Municípios. (...)§ 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.

15. Ao estabelecer que o dano deva ser reparado ou indenizado independentemente da culpa do agente, a norma impôs a ruptura dos pilares do sistema clássico de responsabilidade aquiliana, contemplando a adoção em termos gerais da responsabilidade civil objetiva e alocando a legislação nacional dentre as mais evoluídas na matéria.

16. A Constituição da República de 1988 não apenas recepcionou a legislação anterior, que fixou a responsabilidade objetiva, como também estabeleceu como forma de reparação do dano ambiental três tipos de responsabilidade: civil, penal e administrativa, todas independentes e autônomas entre si, como anteriormente salientado, no art. 225, §3º.

17. Deste modo, o agente tem o dever de reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, independentemente da existência da culpa, sendo suficiente a existência do dano, atual ou futuro, e a prova do nexo de causalidade com a atividade exercida pelo possível poluidor.

18. O Código Civil de 2002, por sua vez, no parágrafo único do art. 927 conduz a uma contemplação sistêmica mais clara da imputação objetiva na responsabilidade civil ambiental.

19. Assim, para a apuração da responsabilidade civil em matéria ambiental afasta-se qualquer tipo de análise sobre o comportamento do agressor do bem jurídico tutelado, não importando se a sua conduta foi negligente, imprudente ou imperita, sendo suficiente a identificação do dano e a existência de uma ligação entre a atuação do possível responsável e o dano identificável, ou seja, o nexo de causalidade.

20. Comprovado o dano e o nexo de causalidade, o agente deve assumir integralmente os riscos que advém de sua atividade, sendo irrelevante se a atividade é lícita ou não, se houve falha humana ou técnica, a ocorrência de estado de necessidade, se foi obra do acaso ou de força maior.

21. Nesse sentido, o STJ consolidou a seguinte tese, sob o rito dos recursos repetitivos: A responsabilidade por dano ambiental é objetiva, informada pela teoria do risco integral, sendo o nexo de causalidade o fator aglutinante que permite que o risco se integre na unidade do ato, sendo descabida a invocação, pela empresa responsável pelo dano ambiental, de excludentes de responsabilidade civil para afastar sua obrigação de indenizar. (Tese julgada sob o rito do art. 543-C do CPC/1973 - TEMA 681 e 707, letra a)

22. Sob outro prisma, o princípio da precaução foi acolhido no enunciado de número quinze da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro em 1992, constituindo um dos principais vetores do regime jurídico da responsabilidade civil ambiental.

23. A adoção do referido princípio modifica a própria noção de dano, eis que a precaução afasta os requisitos da certeza e da previsibilidade, surgindo em seu lugar o critério da probabilidade, pois o bem jurídico tutelado deve ser protegido para a presente e para as futuras gerações. Nesse sentido: REsp n. 2.105.162/RJ, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 11/3/2025, DJEN de 19/3/2025.

24. Na hipótese em comento, de acordo com as informações prestadas pelo ICMBIO no evento 316 do 1º grau, a situação de captação de água no Município de Itatiaia reforça o risco de um grande deslizamento de terra, o que é exacerbado pelos numerosos vazamentos ao longo da estrutura de captação de água municipal, que têm causado infiltrações e instabilidade nas encostas.

25. Como ressaltado pelo Juízo a quo, a negligência em executar essas medidas coloca em risco não apenas o meio ambiente, mas também a segurança e bem-estar da população local, especialmente dos residentes próximos à área afetada. A situação é agravada pela possibilidade de interrupção no abastecimento de água, um serviço essencial para a população de Itatiaia, com potencial para causar uma crise de abastecimento e impactos econômicos severos.

26. A responsabilidade solidária dos réus, assim, se justifica pela contribuição direta ou indireta de cada um para a situação de risco: o Município de Itatiaia pela gestão inadequada do sistema de captação de água; o ICMBio pela administração e proteção insuficientes da Unidade de Conservação; e a União pela sua responsabilidade geral sobre áreas federais e proteção ambiental.

27. Com efeito, de acordo com os fatos narrados e consoante o ordenamento jurídico em vigor, é inquestionável a responsabilidade dos apelantes, impondo-se a manutenção da sentença que determinou medidas para assegurar a reparação integral dos danos já causados e a prevenção de danos futuros.

28. Remessa necessária, considerada existente, e apelações improvidas.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 5ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região decidiu, por unanimidade, negar provimento à remessa, considerada existente, e às apelações, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Rio de Janeiro, 07 de maio de 2025.



Documento eletrônico assinado por ALCIDES MARTINS, Desembargador Federal Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 2ª Região nº 17, de 26 de março de 2018. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc.trf2.jus.br, mediante o preenchimento do código verificador 20002328049v4 e do código CRC 20bee359.

Informações adicionais da assinatura:
Signatário (a): ALCIDES MARTINS
Data e Hora: 16/05/2025, às 15:27:45

 


 


Documento:20002328048
Poder Judiciário
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO

Apelação Cível Nº 0026313-43.2016.4.02.5109/RJ

RELATOR: Desembargador Federal ALCIDES MARTINS

APELANTE: UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO (RÉU)

APELANTE: INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE - ICMBIO (RÉU)

APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (AUTOR)

RELATÓRIO

Trata-se de remessa necessária, que considero existente, e de apelações interpostas pelo INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE – ICMBIO E UNIÃO, objetivando a reforma da sentença (evento 333, 1º grau) que, nos autos da ação civil pública ajuizada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL – MPF contra a União Federal, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Município de Itatiaia, objetivando a adoção de medidas para evitar um deslizamento de terra no Parque Nacional do Itatiaia, que pode prejudicar o sistema de captação de água do município de Itatiaia/RJ, julgou o pedido nos seguintes termos:

 

“(...) CONFIRMO A TUTELA ANTECIPADA E JULGO PROCEDENTES OS PEDIDOS para:

a) Homologar o acordo firmado entre as partes em 08/11/2017, reconhecendo a responsabilidade solidária dos réus.

b) Determinar que o Município de Itatiaia conclua a primeira etapa do acordo, apresentando resposta sobre a atualização do projeto da empresa SANEPROJ Ambiental, incluindo a possibilidade de aproveitamento do projeto à luz dos problemas e plano de necessidades apontados pelo ICMBio. Caso o aproveitamento do projeto elaborado não seja viável, deve apresentar em juízo um novo projeto de obras que contemple as necessidades de reparação de irregularidades e prevenção de dano ambiental apontadas pelo ICMBio. Prazo: 30 (trinta) dias.

 

Em suas razões (evento 340, 1º grau), o ICMBIO alega, em síntese, que não possui atribuição legal para executar obras emergenciais para evitar o deslizamento de terra, não possuindo estrutura nem corpo técnico para a realização destas, sendo descabida sua condenação solidária.

Por sua vez, a União aduz (evento 345, 1º grau), inicialmente, sua ilegitimidade passiva ad causam. No mérito, argumenta que somente haveria responsabilidade subsidiária se tivesse concorrido para a omissão na atividade de fiscalização e prevenção de danos ambientais, o que não é o caso. Requer seja dado provimento ao presente recurso de apelação para que seja reconhecida sua ilegitimidade passiva ad causam ou, no mérito, afastar a sua responsabilidade.

Parecer do Ministério Público Federal (evento 8, 2º grau), como custos legis, pelo desprovimento das apelações.

É o relatório.

VOTO

Conheço da remessa, considerada existente, bem como das apelações, eis que presentes seus pressupostos de admissibilidade.

Conforme relatado, a devolução cinge-se à análise da sentença que, nos autos da ação civil pública ajuizada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL – MPF contra a União Federal, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Município de Itatiaia, objetivando a adoção de medidas para evitar um deslizamento de terra no Parque Nacional do Itatiaia, que pode prejudicar o sistema de captação de água do município de Itatiaia/RJ, julgou o pedido nos seguintes termos:

 

“(...) CONFIRMO A TUTELA ANTECIPADA E JULGO PROCEDENTES OS PEDIDOS para:

a) Homologar o acordo firmado entre as partes em 08/11/2017, reconhecendo a responsabilidade solidária dos réus.

b) Determinar que o Município de Itatiaia conclua a primeira etapa do acordo, apresentando resposta sobre a atualização do projeto da empresa SANEPROJ Ambiental, incluindo a possibilidade de aproveitamento do projeto à luz dos problemas e plano de necessidades apontados pelo ICMBio. Caso o aproveitamento do projeto elaborado não seja viável, deve apresentar em juízo um novo projeto de obras que contemple as necessidades de reparação de irregularidades e prevenção de dano ambiental apontadas pelo ICMBio. Prazo: 30 (trinta) dias.

Consoante a leitura da exordial, no dia 9 de novembro de 2015, teve início um grande processo de movimentação de solo e aterro no interior do Parque Nacional do Itatiaia (PNI), junto à margem do rio Campo Belo, próximo às estruturas de um dos pontos principais de captação de água do município de Itatiaia/RJ, no local conhecido como Lote 13 do Ex-Núcleo Colonial de Itatiaia, na Estrada da Usina Velha, em Itatiaia/RJ.

Logo em seguida a ocorrência do sinistro, o Prefeito de Itatiaia solicitou uma vistoria técnica ao Departamento de Recursos Minerais do Rio de Janeiro (DRM-RJ), a fim de verificar a gravidade da situação e as medidas emergenciais necessárias para evitar a ocorrência de um grave desastre ecológico no local, bem como a interrupção do abastecimento de água do município (Evento 1, OUT2, Página 18, 1º grau).

Após a verificação in loco da situação e avaliação das condições de estabilidade da grande massa de terra deslocada, o DRM-RJ recomendou à Prefeitura de Itatiaia a adoção de uma série de medidas emergenciais necessárias apenas para evitar que novas infiltrações levassem toda a massa abaixo (atuação sobre os agentes deflagradores do movimento de massa), sendo tais medidas executadas em parte pelo município.

No entanto, após nova manifestação técnica do DRM-RJ, verificou-se que essas medidas não seriam suficientes para sanar o risco de deslizamento e, consequentemente, de um desastre de grandes proporções, de modo que deveria ser realizado um projeto técnico para a contenção dessa massa, conforme especificado no relatório do órgão; ainda que os agentes deflagradores fossem controlados, a massa já se encontrava desestabilizada e individualizada (Evento 1, OUT3, 1º grau).

Em virtude disso, o MPF ingressou com a presente ação civil pública e, após a fase instrutória, foi prolatada a sentença ora recorrida, que reconheceu a responsabilidade solidária dos réus e determinou a conclusão da primeira etapa do acordo pelo Município de Itatiaia, que deveria apresentar uma resposta sobre a atualização do projeto da empresa SANEPROJ Ambiental, incluindo a possibilidade de aproveitamento do projeto à luz dos problemas e plano de necessidades apontados pelo ICMBio (Evento 333, 1º grau).

A sentença proferida pelo Juízo a quo não merece reparos.

Inicialmente, não prospera a tese da União de ilegitimidade passiva ad causam.

Consoante disposto no art. 23, incisos VI e VII, da Constituição da República, é de competência comum da UNIÃO, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios "proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas" e "preservar as florestas, a fauna e a flora".

Ademais, o Parque Nacional do Itatiaia é área de domínio da União, sendo esta, portanto, responsável direta pela sua proteção e recomposição, ainda que o o causador direto do dano tenha sido o ente municipal.

Assim, a União é responsável por adotar, diante da omissão do Município de Itatiaia, as medidas emergenciais necessárias para evitar danos ambientais de graves proporções no interior da unidade de conservação.

Sob outro prisma, a condenação dos entes públicos se deu na medida do que foi estabelecido no acordo homologado em juízo no evento 163 do 1º grau, segundo o qual: "A) O Município de Itatiaia compromete-se: A.1) apresentar em juizo, em 10 (dez) dias cópia do processo administrativo já instaurado para que seja dado cumprimento integral a Decisão judicial. A.2) o Município de Itatiaia compromete-se a informar este juízo todas as etapas do citado processo licitatório cujo escopo é a confecção do projeto da obra. A.3) o Município de Itatiaia compromete-se apresentar em juízo tão logo o projeto lhe seja entregue e aprovado. B) Uma vez apresentado o projeto, os demais réus e o autor, dele tomando ciência, deverão se manifestar nos autos acerca de seu conteúdo em 30 (trinta) dias. Prazo comum. C) A União compromete-se a, em 45 (quarenta e cinco) dias a contar da homologação do laudo, apresentação do convênio ou outro instrumento hábil para tanto de sorte a autorizar o Município a deflagrar o processo de licitação para a execução da obra. Prazo comum. D) O Município de Itatiaia compromete-se a dar início ao processo administrativo voltado a execução da obra tão logo seja intimado do instrumento citado no item anterior (C), devendo informar a este juízo acerca do andamento, da mesma forma como estipulado no item (A.2). V- O descumprimento de qualquer compromisso aqui entabulado levantará a suspensão da imposição de multa, sem prejuízo de outras medidas mais constritivas a serem eventualmente fixadas por este juízo. Saem os presentes intimados".

No mérito, em matéria de responsabilidade civil ambiental, o Brasil apresenta uma evolução legislativa peculiar e bastante positiva em termos de direito comparado.

Em uma primeira fase, o arcabouço normativo fundamental para dirimir questões envolvendo o tema da responsabilidade civil na seara ambiental era o Código Civil de 1916, onde a pretensão derivada do dano ambiental encontrava amparo no regime jurídico fundado na culpa (art. 159), apresentando como excludentes a legítima defesa, o exercício regular de direito, o estado de necessidade, o fato da vítima e o fato de terceiro, bem como o caso fortuito e de força maior e a cláusula de não indenizar.

Com o advento da Lei nº 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente), foi positivado em nosso ordenamento o grande marco evolutivo no regime jurídico aplicável às hipóteses de dano ambiental, estabelecendo o art. 14 do referido diploma legal, in verbis:

“Art 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:

I - à multa simples ou diária, nos valores correspondentes, no mínimo, a 10 (dez) e, no máximo, a 1.000 (mil) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional - ORTNs, agravada em casos de reincidência específica, conforme dispuser o regulamento, vedada a sua cobrança pela União se já tiver sido aplicada pelo Estado, Distrito Federal, Territórios ou pelos Municípios.

II - à perda ou restrição de incentivos e benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público;

III - à perda ou suspensão de participação em linhas de financiamento em estabelecimentos oficiais de crédito;

IV - à suspensão de sua atividade.

§ 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.”(g.n)

 

Ao estabelecer que o dano deva ser reparado ou indenizado independentemente da culpa do agente, a norma impôs a ruptura dos pilares do sistema clássico de responsabilidade aquiliana, contemplando a adoção em termos gerais da responsabilidade civil objetiva e alocando a legislação nacional dentre as mais evoluídas na matéria.

A Constituição da República de 1988 não apenas recepcionou a legislação anterior, que fixou a responsabilidade objetiva, como também estabeleceu como forma de reparação do dano ambiental três tipos de responsabilidade: civil, penal e administrativa, todas independentes e autônomas entre si, como anteriormente salientado, no art. 225, §3º.

Deste modo, o agente tem o dever de reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, independentemente da existência da culpa, sendo suficiente a existência do dano, atual ou futuro, e a prova do nexo de causalidade com a atividade exercida pelo possível poluidor.

O Código Civil de 2002, por sua vez, no parágrafo único do art. 927 conduz a uma contemplação sistêmica mais clara da imputação objetiva na responsabilidade civil ambiental.

Assim, para a apuração da responsabilidade civil em matéria ambiental afasta-se qualquer tipo de análise sobre o comportamento do agressor do bem jurídico tutelado, não importando se a sua conduta foi negligente, imprudente ou imperita, sendo suficiente a identificação do dano e a existência de uma ligação entre a atuação do possível responsável e o dano identificável, ou seja, o nexo de causalidade.

Na lição de Édis Milaré[1]: “A vinculação da responsabilidade objetiva à teoria do risco integral expressa a preocupação da doutrina em estabelecer um sistema de responsabilidade o mais rigoroso possível, ante o alarmante quadro de degradação que se assiste não só no Brasil, mas em todo o mundo. Segundo a teoria do risco integral, qualquer fato, culposo ou não-culposo, impõe ao agente a reparação, desde que cause um dano”.

Comprovado o dano e o nexo de causalidade, o agente deve assumir integralmente os riscos que advém de sua atividade, sendo irrelevante se a atividade é lícita ou não, se houve falha humana ou técnica, a ocorrência de estado de necessidade, se foi obra do acaso ou de força maior.

Nesse sentido, o STJ consolidou a seguinte tese, sob o rito dos recursos repetitivos:

A responsabilidade por dano ambiental é objetiva, informada pela teoria do risco integral, sendo o nexo de causalidade o fator aglutinante que permite que o risco se integre na unidade do ato, sendo descabida a invocação, pela empresa responsável pelo dano ambiental, de excludentes de responsabilidade civil para afastar sua obrigação de indenizar. (Tese julgada sob o rito do art. 543-C do CPC/1973 - TEMA 681 e 707, letra a)

 

Sob outro prisma, o princípio da precaução foi acolhido no enunciado de número quinze da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro em 1992, constituindo um dos principais vetores do regime jurídico da responsabilidade civil ambiental.

A adoção do referido princípio modifica a própria noção de dano, eis que a precaução afasta os requisitos da certeza e da previsibilidade, surgindo em seu lugar o critério da probabilidade, pois o bem jurídico tutelado deve ser protegido para a presente e para as futuras gerações.

Nesse sentido:

 

RECURSO ESPECIAL. LEGISLAÇÃO EXTRAVAGANTE. CRIME AMBIENTAL. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE COTEJO ANALÍTICO. INADMISSIBILIDADE. VIOLAÇÃO DE DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS. INVIABILIDADE DE ANÁLISE NA VIA ELEITA. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 25, CAPUT E § 5º, DA LEI N. 9.605/1998 E 89, § 5º, DA LEI N. 9.099/1995. PLEITO DE RESTITUIÇÃO DE BENS APREENDIDOS. TESE DE ILEGALIDADE ANTE O CUMPRIMENTO DAS CONDIÇÕES DO SURSIS PROCESSUAL E DA DECRETADA EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE. IRRELEVÂNCIA. PRIMAZIA DOS PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO E DA PRECAUÇÃO. NECESSIDADE DE EFETIVA PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. DECRETO N. 6.514/2008. INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO. CARACTERIZADA A ILICITUDE DO FATO. INSTRUMENTOS UTILIZADOS QUANDO DA INFRAÇÃO AMBIENTAL.

1. (...)

6. O entendimento manifestado pelas instâncias ordinárias está em harmonia com os princípios da prevenção e da precaução, que orientam as relações de proteção ao meio ambiente. A apreensão e retenção de bens têm uma finalidade preventiva, visando evitar novas infrações e proteger o meio ambiente, conforme regulamentado pelo Decreto n. 6.514/2008.

7. Nesse sentido, é oportuno relembrar que o Direito Ambiental é orientado, dentre outros, pelos princípios da prevenção e da precaução, do poluidor-pagador e pelo princípio da responsabilidade.

Em linhas gerais, referidos preceitos estabelecem mais que padrões de conduta nas atividades que impactam o meio ambiente; são guias para direcionamento de quaisquer ações humanas - sejam elas expressas em atividades diárias e comuns do ser humano, sejam decorrentes de decisões de instituições públicas ou privadas, conglomerados econômicos ou sintetizadores de uma política estatal - na concretização do direito fundamental ao "meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações" (art. 225, caput, da CF) - (REsp n. 2.168.024, Ministro Teodoro Silva Santos, DJEN de DJe 14/11/2024).

8. A Constituição Federal de 1988 alçou à categoria de direito humano fundamental (terceira geração) o meio ambiente ecologicamente equilibrado, assegurando-se, às presentes e futuras gerações, modelo de desenvolvimento sustentável, capaz de realizar a um só tempo, a proteção ao meio ambiente, o progresso e aperfeiçoamento econômico e a justiça social. Estabeleceu-se, assim, rol de deveres ao Estado e à coletividade de preservação ao meio ambiente, orientada por princípios, aos quais, ao caso concreto, são pertinentes citar: prevenção, precaução, reparação e desenvolvimento sustentável (AgRg no AREsp n. 2.356.358/SC, Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, DJe de 18/8/2023).

9. Mesmo que firmada a suspensão condicional do processo, e ocorrida a extinção de punibilidade, hígida a decisão que inadmitiu a devolução dos bens apreendidos quando da infração ambiental, porquanto caracterizada a ilicitude do fato, sendo assim, regular a observância do comando prescrito no art. 25, § 5º, da Lei n. 9.605/1998.

10. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, desprovido.

(REsp n. 2.105.162/RJ, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 11/3/2025, DJEN de 19/3/2025.)

 

Na hipótese em comento, de acordo com as informações prestadas pelo ICMBIO no evento 316 do 1º grau, a situação de captação de água no Município de Itatiaia reforça o risco de um grande deslizamento de terra, o que é exacerbado pelos numerosos vazamentos ao longo da estrutura de captação de água municipal, que têm causado infiltrações e instabilidade nas encostas.

Como ressaltado pelo Juízo a quo, a negligência em executar essas medidas coloca em risco não apenas o meio ambiente, mas também a segurança e bem-estar da população local, especialmente dos residentes próximos à área afetada. A situação é agravada pela possibilidade de interrupção no abastecimento de água, um serviço essencial para a população de Itatiaia, com potencial para causar uma crise de abastecimento e impactos econômicos severos.

A responsabilidade solidária dos réus, assim, se justifica pela contribuição direta ou indireta de cada um para a situação de risco: o Município de Itatiaia pela gestão inadequada do sistema de captação de água; o ICMBio pela administração e proteção insuficientes da Unidade de Conservação; e a União pela sua responsabilidade geral sobre áreas federais e proteção ambiental.

Com efeito, de acordo com os fatos narrados e consoante o ordenamento jurídico em vigor, é inquestionável a responsabilidade dos apelantes, impondo-se a manutenção da sentença que determinou medidas para assegurar a reparação integral dos danos já causados e a prevenção de danos futuros.

Ante o exposto, voto no sentido de negar provimento à remessa, considerada existente, e às apelações, nos termos da fundamentação supra.



Documento eletrônico assinado por ALCIDES MARTINS, Desembargador Federal Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 2ª Região nº 17, de 26 de março de 2018. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc.trf2.jus.br, mediante o preenchimento do código verificador 20002328048v3 e do código CRC 2c2ae310.

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Signatário (a): ALCIDES MARTINS
Data e Hora: 16/05/2025, às 15:27:45