Conheço da remessa, considerada existente, bem como das apelações, eis que presentes seus pressupostos de admissibilidade.
Conforme relatado, a devolução cinge-se à análise da sentença que, nos autos da ação civil pública ajuizada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL – MPF contra a União Federal, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Município de Itatiaia, objetivando a adoção de medidas para evitar um deslizamento de terra no Parque Nacional do Itatiaia, que pode prejudicar o sistema de captação de água do município de Itatiaia/RJ, julgou o pedido nos seguintes termos:
“(...) CONFIRMO A TUTELA ANTECIPADA E JULGO PROCEDENTES OS PEDIDOS para:
a) Homologar o acordo firmado entre as partes em 08/11/2017, reconhecendo a responsabilidade solidária dos réus.
b) Determinar que o Município de Itatiaia conclua a primeira etapa do acordo, apresentando resposta sobre a atualização do projeto da empresa SANEPROJ Ambiental, incluindo a possibilidade de aproveitamento do projeto à luz dos problemas e plano de necessidades apontados pelo ICMBio. Caso o aproveitamento do projeto elaborado não seja viável, deve apresentar em juízo um novo projeto de obras que contemple as necessidades de reparação de irregularidades e prevenção de dano ambiental apontadas pelo ICMBio. Prazo: 30 (trinta) dias.
Consoante a leitura da exordial, no dia 9 de novembro de 2015, teve início um grande processo de movimentação de solo e aterro no interior do Parque Nacional do Itatiaia (PNI), junto à margem do rio Campo Belo, próximo às estruturas de um dos pontos principais de captação de água do município de Itatiaia/RJ, no local conhecido como Lote 13 do Ex-Núcleo Colonial de Itatiaia, na Estrada da Usina Velha, em Itatiaia/RJ.
Logo em seguida a ocorrência do sinistro, o Prefeito de Itatiaia solicitou uma vistoria técnica ao Departamento de Recursos Minerais do Rio de Janeiro (DRM-RJ), a fim de verificar a gravidade da situação e as medidas emergenciais necessárias para evitar a ocorrência de um grave desastre ecológico no local, bem como a interrupção do abastecimento de água do município (Evento 1, OUT2, Página 18, 1º grau).
Após a verificação in loco da situação e avaliação das condições de estabilidade da grande massa de terra deslocada, o DRM-RJ recomendou à Prefeitura de Itatiaia a adoção de uma série de medidas emergenciais necessárias apenas para evitar que novas infiltrações levassem toda a massa abaixo (atuação sobre os agentes deflagradores do movimento de massa), sendo tais medidas executadas em parte pelo município.
No entanto, após nova manifestação técnica do DRM-RJ, verificou-se que essas medidas não seriam suficientes para sanar o risco de deslizamento e, consequentemente, de um desastre de grandes proporções, de modo que deveria ser realizado um projeto técnico para a contenção dessa massa, conforme especificado no relatório do órgão; ainda que os agentes deflagradores fossem controlados, a massa já se encontrava desestabilizada e individualizada (Evento 1, OUT3, 1º grau).
Em virtude disso, o MPF ingressou com a presente ação civil pública e, após a fase instrutória, foi prolatada a sentença ora recorrida, que reconheceu a responsabilidade solidária dos réus e determinou a conclusão da primeira etapa do acordo pelo Município de Itatiaia, que deveria apresentar uma resposta sobre a atualização do projeto da empresa SANEPROJ Ambiental, incluindo a possibilidade de aproveitamento do projeto à luz dos problemas e plano de necessidades apontados pelo ICMBio (Evento 333, 1º grau).
A sentença proferida pelo Juízo a quo não merece reparos.
Inicialmente, não prospera a tese da União de ilegitimidade passiva ad causam.
Consoante disposto no art. 23, incisos VI e VII, da Constituição da República, é de competência comum da UNIÃO, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios "proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas" e "preservar as florestas, a fauna e a flora".
Ademais, o Parque Nacional do Itatiaia é área de domínio da União, sendo esta, portanto, responsável direta pela sua proteção e recomposição, ainda que o o causador direto do dano tenha sido o ente municipal.
Assim, a União é responsável por adotar, diante da omissão do Município de Itatiaia, as medidas emergenciais necessárias para evitar danos ambientais de graves proporções no interior da unidade de conservação.
Sob outro prisma, a condenação dos entes públicos se deu na medida do que foi estabelecido no acordo homologado em juízo no evento 163 do 1º grau, segundo o qual: "A) O Município de Itatiaia compromete-se: A.1) apresentar em juizo, em 10 (dez) dias cópia do processo administrativo já instaurado para que seja dado cumprimento integral a Decisão judicial. A.2) o Município de Itatiaia compromete-se a informar este juízo todas as etapas do citado processo licitatório cujo escopo é a confecção do projeto da obra. A.3) o Município de Itatiaia compromete-se apresentar em juízo tão logo o projeto lhe seja entregue e aprovado. B) Uma vez apresentado o projeto, os demais réus e o autor, dele tomando ciência, deverão se manifestar nos autos acerca de seu conteúdo em 30 (trinta) dias. Prazo comum. C) A União compromete-se a, em 45 (quarenta e cinco) dias a contar da homologação do laudo, apresentação do convênio ou outro instrumento hábil para tanto de sorte a autorizar o Município a deflagrar o processo de licitação para a execução da obra. Prazo comum. D) O Município de Itatiaia compromete-se a dar início ao processo administrativo voltado a execução da obra tão logo seja intimado do instrumento citado no item anterior (C), devendo informar a este juízo acerca do andamento, da mesma forma como estipulado no item (A.2). V- O descumprimento de qualquer compromisso aqui entabulado levantará a suspensão da imposição de multa, sem prejuízo de outras medidas mais constritivas a serem eventualmente fixadas por este juízo. Saem os presentes intimados".
No mérito, em matéria de responsabilidade civil ambiental, o Brasil apresenta uma evolução legislativa peculiar e bastante positiva em termos de direito comparado.
Em uma primeira fase, o arcabouço normativo fundamental para dirimir questões envolvendo o tema da responsabilidade civil na seara ambiental era o Código Civil de 1916, onde a pretensão derivada do dano ambiental encontrava amparo no regime jurídico fundado na culpa (art. 159), apresentando como excludentes a legítima defesa, o exercício regular de direito, o estado de necessidade, o fato da vítima e o fato de terceiro, bem como o caso fortuito e de força maior e a cláusula de não indenizar.
Com o advento da Lei nº 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente), foi positivado em nosso ordenamento o grande marco evolutivo no regime jurídico aplicável às hipóteses de dano ambiental, estabelecendo o art. 14 do referido diploma legal, in verbis:
“Art 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:
I - à multa simples ou diária, nos valores correspondentes, no mínimo, a 10 (dez) e, no máximo, a 1.000 (mil) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional - ORTNs, agravada em casos de reincidência específica, conforme dispuser o regulamento, vedada a sua cobrança pela União se já tiver sido aplicada pelo Estado, Distrito Federal, Territórios ou pelos Municípios.
II - à perda ou restrição de incentivos e benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público;
III - à perda ou suspensão de participação em linhas de financiamento em estabelecimentos oficiais de crédito;
IV - à suspensão de sua atividade.
§ 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.”(g.n)
Ao estabelecer que o dano deva ser reparado ou indenizado independentemente da culpa do agente, a norma impôs a ruptura dos pilares do sistema clássico de responsabilidade aquiliana, contemplando a adoção em termos gerais da responsabilidade civil objetiva e alocando a legislação nacional dentre as mais evoluídas na matéria.
A Constituição da República de 1988 não apenas recepcionou a legislação anterior, que fixou a responsabilidade objetiva, como também estabeleceu como forma de reparação do dano ambiental três tipos de responsabilidade: civil, penal e administrativa, todas independentes e autônomas entre si, como anteriormente salientado, no art. 225, §3º.
Deste modo, o agente tem o dever de reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, independentemente da existência da culpa, sendo suficiente a existência do dano, atual ou futuro, e a prova do nexo de causalidade com a atividade exercida pelo possível poluidor.
O Código Civil de 2002, por sua vez, no parágrafo único do art. 927 conduz a uma contemplação sistêmica mais clara da imputação objetiva na responsabilidade civil ambiental.
Assim, para a apuração da responsabilidade civil em matéria ambiental afasta-se qualquer tipo de análise sobre o comportamento do agressor do bem jurídico tutelado, não importando se a sua conduta foi negligente, imprudente ou imperita, sendo suficiente a identificação do dano e a existência de uma ligação entre a atuação do possível responsável e o dano identificável, ou seja, o nexo de causalidade.
Na lição de Édis Milaré[1]: “A vinculação da responsabilidade objetiva à teoria do risco integral expressa a preocupação da doutrina em estabelecer um sistema de responsabilidade o mais rigoroso possível, ante o alarmante quadro de degradação que se assiste não só no Brasil, mas em todo o mundo. Segundo a teoria do risco integral, qualquer fato, culposo ou não-culposo, impõe ao agente a reparação, desde que cause um dano”.
Comprovado o dano e o nexo de causalidade, o agente deve assumir integralmente os riscos que advém de sua atividade, sendo irrelevante se a atividade é lícita ou não, se houve falha humana ou técnica, a ocorrência de estado de necessidade, se foi obra do acaso ou de força maior.
Nesse sentido, o STJ consolidou a seguinte tese, sob o rito dos recursos repetitivos:
A responsabilidade por dano ambiental é objetiva, informada pela teoria do risco integral, sendo o nexo de causalidade o fator aglutinante que permite que o risco se integre na unidade do ato, sendo descabida a invocação, pela empresa responsável pelo dano ambiental, de excludentes de responsabilidade civil para afastar sua obrigação de indenizar. (Tese julgada sob o rito do art. 543-C do CPC/1973 - TEMA 681 e 707, letra a)
Sob outro prisma, o princípio da precaução foi acolhido no enunciado de número quinze da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro em 1992, constituindo um dos principais vetores do regime jurídico da responsabilidade civil ambiental.
A adoção do referido princípio modifica a própria noção de dano, eis que a precaução afasta os requisitos da certeza e da previsibilidade, surgindo em seu lugar o critério da probabilidade, pois o bem jurídico tutelado deve ser protegido para a presente e para as futuras gerações.
Nesse sentido:
RECURSO ESPECIAL. LEGISLAÇÃO EXTRAVAGANTE. CRIME AMBIENTAL. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE COTEJO ANALÍTICO. INADMISSIBILIDADE. VIOLAÇÃO DE DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS. INVIABILIDADE DE ANÁLISE NA VIA ELEITA. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 25, CAPUT E § 5º, DA LEI N. 9.605/1998 E 89, § 5º, DA LEI N. 9.099/1995. PLEITO DE RESTITUIÇÃO DE BENS APREENDIDOS. TESE DE ILEGALIDADE ANTE O CUMPRIMENTO DAS CONDIÇÕES DO SURSIS PROCESSUAL E DA DECRETADA EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE. IRRELEVÂNCIA. PRIMAZIA DOS PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO E DA PRECAUÇÃO. NECESSIDADE DE EFETIVA PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. DECRETO N. 6.514/2008. INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO. CARACTERIZADA A ILICITUDE DO FATO. INSTRUMENTOS UTILIZADOS QUANDO DA INFRAÇÃO AMBIENTAL.
1. (...)
6. O entendimento manifestado pelas instâncias ordinárias está em harmonia com os princípios da prevenção e da precaução, que orientam as relações de proteção ao meio ambiente. A apreensão e retenção de bens têm uma finalidade preventiva, visando evitar novas infrações e proteger o meio ambiente, conforme regulamentado pelo Decreto n. 6.514/2008.
7. Nesse sentido, é oportuno relembrar que o Direito Ambiental é orientado, dentre outros, pelos princípios da prevenção e da precaução, do poluidor-pagador e pelo princípio da responsabilidade.
Em linhas gerais, referidos preceitos estabelecem mais que padrões de conduta nas atividades que impactam o meio ambiente; são guias para direcionamento de quaisquer ações humanas - sejam elas expressas em atividades diárias e comuns do ser humano, sejam decorrentes de decisões de instituições públicas ou privadas, conglomerados econômicos ou sintetizadores de uma política estatal - na concretização do direito fundamental ao "meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações" (art. 225, caput, da CF) - (REsp n. 2.168.024, Ministro Teodoro Silva Santos, DJEN de DJe 14/11/2024).
8. A Constituição Federal de 1988 alçou à categoria de direito humano fundamental (terceira geração) o meio ambiente ecologicamente equilibrado, assegurando-se, às presentes e futuras gerações, modelo de desenvolvimento sustentável, capaz de realizar a um só tempo, a proteção ao meio ambiente, o progresso e aperfeiçoamento econômico e a justiça social. Estabeleceu-se, assim, rol de deveres ao Estado e à coletividade de preservação ao meio ambiente, orientada por princípios, aos quais, ao caso concreto, são pertinentes citar: prevenção, precaução, reparação e desenvolvimento sustentável (AgRg no AREsp n. 2.356.358/SC, Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, DJe de 18/8/2023).
9. Mesmo que firmada a suspensão condicional do processo, e ocorrida a extinção de punibilidade, hígida a decisão que inadmitiu a devolução dos bens apreendidos quando da infração ambiental, porquanto caracterizada a ilicitude do fato, sendo assim, regular a observância do comando prescrito no art. 25, § 5º, da Lei n. 9.605/1998.
10. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, desprovido.
(REsp n. 2.105.162/RJ, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 11/3/2025, DJEN de 19/3/2025.)
Na hipótese em comento, de acordo com as informações prestadas pelo ICMBIO no evento 316 do 1º grau, a situação de captação de água no Município de Itatiaia reforça o risco de um grande deslizamento de terra, o que é exacerbado pelos numerosos vazamentos ao longo da estrutura de captação de água municipal, que têm causado infiltrações e instabilidade nas encostas.
Como ressaltado pelo Juízo a quo, a negligência em executar essas medidas coloca em risco não apenas o meio ambiente, mas também a segurança e bem-estar da população local, especialmente dos residentes próximos à área afetada. A situação é agravada pela possibilidade de interrupção no abastecimento de água, um serviço essencial para a população de Itatiaia, com potencial para causar uma crise de abastecimento e impactos econômicos severos.
A responsabilidade solidária dos réus, assim, se justifica pela contribuição direta ou indireta de cada um para a situação de risco: o Município de Itatiaia pela gestão inadequada do sistema de captação de água; o ICMBio pela administração e proteção insuficientes da Unidade de Conservação; e a União pela sua responsabilidade geral sobre áreas federais e proteção ambiental.
Com efeito, de acordo com os fatos narrados e consoante o ordenamento jurídico em vigor, é inquestionável a responsabilidade dos apelantes, impondo-se a manutenção da sentença que determinou medidas para assegurar a reparação integral dos danos já causados e a prevenção de danos futuros.
Ante o exposto, voto no sentido de negar provimento à remessa, considerada existente, e às apelações, nos termos da fundamentação supra.