Conheço do recurso de apelação porquanto presentes seus pressupostos de admissibilidade.
Nesta ação, o impetrante, associação civil sem fins lucrativos, insurge-se contra o ADE 46/2015, que suspendeu a isenção prevista no art. 15 da Lei 9.532/97, com referência ao ano-calendário de 2010.
Tal ato decorreu da ação fiscal iniciada em 08/04/2014, em que restou verificada a dispensa do pagamento de quantia da qual o apelante era credor, no valor de R$ 939.658,51 (novecentos e trinta e nove mil, seiscentos e cinquenta e oito reais e cinquenta e um centavos), mediante correspondência datada de 22/12/2010.
Concluído o procedimento fiscalizatório, a autoridade lavrou Notificação Fiscal de Suspensão de Isenção baseada no descumprimento do art. 12, § 2º, “b”, da Lei 9.532/97, que condiciona a isenção tributária à aplicação da integralidade dos recursos na manutenção e desenvolvimento dos seus objetivos sociais, verbis:
“Art. 12. Para efeito do disposto no art. 150, inciso VI, alínea "c", da Constituição, considera-se imune a instituição de educação ou de assistência social que preste os serviços para os quais houver sido instituída e os coloque à disposição da população em geral, em caráter complementar às atividades do Estado, sem fins lucrativos. (Vide artigos 1º e 2º da Mpv 2.189-49, de 2001) (Vide Medida Provisória nº 2158-35, de 2001) (Vide ADIN Nº 1802)
(...)
§ 2º Para o gozo da imunidade, as instituições a que se refere este artigo, estão obrigadas a atender aos seguintes requisitos:
(...)
b) aplicar integralmente seus recursos na manutenção e desenvolvimento dos seus objetivos sociais;
(...)
§ 3° Considera-se entidade sem fins lucrativos a que não apresente superávit em suas contas ou, caso o apresente em determinado exercício, destine referido resultado, integralmente, à manutenção e ao desenvolvimento dos seus objetivos sociais. (Redação dada pela Lei nº 9.718, de 1998)
(...)”
O MM. Juízo Federal a quo julgou improcedente o pedido, transcrevendo excerto da manifestação do MPF, in verbis:
“ (...) O Parecer Conclusivo emitido pela Receita Federal (fls.1414/1423) indicam dois fatos ensejadores da notificação em desfavor da impetrante: a sua participação em quadro societário da empresa Olympo Marketing e Licenciamento, de finalidade lucrativa, de forma contínua, desde sua constituição em 2004 e ter perdoado em 22/10/2010 dívida da mesma empresa no valor de R$ 939.658,51, em relação a recursos transferidos pelo COB a título de empréstimo para custeio de despesas nos anos de 2005 a 2008. De fato, a leitura ao Estatuto Social do COB (fls. 97/121) indica em seu art. 5º, 'h' a expressa vedação da constituição de pessoas jurídicas de direito privado com fins lucrativos, e o instrumento particular de constituição da empresa Olympo Marketing e Licenciamento (fls. 611/619) a denomina Sociedade Simples Pura, de caráter privado com finalidade lucrativa, de cujo quadro societário faz parte o COB e outros dois sócios detendo 100% do capital social. Muito embora a empresa Olympo tenha sido constituída no ano de 2004 e os recursos transferidos entre 2005 e 2008, a infração à legislação referente à obtenção de isenção refere-se à remissão desses recursos por parte do COB ocorrida em 2010, não estando encerrado, portanto, o prazo decadencial de 5 (cinco) anos. Por fim, a suspensão dos efeitos da notificação impossibilitaria a atuação da fiscalização a cargo da Receita Federal e favoreceria a ocorrência de extinção dos créditos tributários por decadência medida causadora de dano ao erário, sendo certo que a atribuição conferida à impetrante para organização dos jogos olímpicos de 2016 não se presta para lhe tornar imune às ações institucionais da Receita Federal. Portanto, no mérito, não assiste razão à impetrante, e ante a inexistência de qualquer ilegalidade ou de abuso de poder na fiscalização efetuada pela Receita Federal, pugna o Ministério Público Federal pela denegação da segurança”.
Destaco, ainda, parágrafo do referido Parecer, no sentido de que “o perdão da dívida concedida pelo COB configura renúncia de quase um milhão de reais em recursos que poderiam ter sido revertidos para custear suas atividades sociais, caracterizando eventual desvio na manutenção e desenvolvimento de seus objetivos institucionais, pelo que nesta oportunidade este Parquet oficia ao Ministério Público Estadual para as providências cabíveis”.
Preliminarmente, o apelante sustenta a nulidade da sentença, por ausência de fundamentação. No ponto, assiste-lhe razão, haja vista que o MM. Juízo Federal a quo tão somente adotou os argumentos lançados no parecer ministerial, sem trazer argumentação própria, o que afasta a validade da técnica da motivação per relationem, como reconhecido na jurisprudência.
De fato, é "firme o entendimento deste Superior Tribunal no sentido de ser válida a utilização da técnica da fundamentação per relationem, em que o magistrado emprega trechos de decisão anterior ou de parecer ministerial como razão de decidir, desde que a matéria tenha sido abordada pelo órgão julgador, com a menção a argumentos próprios". (AgRg no AREsp 2098863/RS, Quinta Turma, DJe 16/11/2022)
Uma vez declarada a nulidade da sentença por ausência de fundamentação, e estando os autos em condições de imediato julgamento, passa-se à análise do mérito, com base no art. 1013, §3º, IV do CPC, verbis:
"Art. 1.013. A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada.
§ 3º Se o processo estiver em condições de imediato julgamento, o tribunal deve decidir desde logo o mérito quando:
IV - decretar a nulidade de sentença por falta de fundamentação."
Da análise dos autos, dessume-se que os seguintes fatos são incontroversos:
(i) o impetrante participou do quadro societário da sociedade empresária de finalidade lucrativa OLYMPO MARKETING E LICENCIAMENTO (“OLYMPO”), desde sua constituição em 2004; e
(ii) dispensou tal sociedade do pagamento da quantia de R$ 939.658,51 (novecentos e trinta e nove mil seiscentos e cinquenta e oito reais e cinquenta e um centavos), relativa a empréstimos realizados entre 2005 e 2008, em 22/10/2010.
O impetrante alegou a decadência, sustentando, nesta linha, que os supostos desvios ocorreram:
(i) quando da constituição da sociedade OLYMPO (08/01/2004); e
(ii) quando investidos recursos para custear as despesas incorridas por aquela sociedade, no período de 31/08/2005 a 01/11/2008, sendo estas as datas das supostas infrações e, consequentemente, o marco inicial do lustro decadencial, e não a data considerada pela fiscalização, em que houve o perdão da dívida (22/12/2010). Logo, já havia transcorrido o lustro quando da formalização da Notificação Fiscal de Suspensão de Isenção, em 26/12/2014. (evento 14, OUT47)
Asseverou, neste sentido, que o art. 32 da Lei 9.430/96 determina expressamente que, no procedimento de suspensão da imunidade ou isenção, a autoridade fiscal deverá indicar, obrigatoriamente, a data da ocorrência da infração, que será, inclusive, o marco inicial para a suspensão da imunidade/isenção e a respectiva cobrança dos tributos não recolhidos pela entidade beneficiada.
“Art. 32. A suspensão da imunidade tributária, em virtude de falta de observância de requisitos legais, deve ser procedida de conformidade com o disposto neste artigo.
§ 1º Constatado que entidade beneficiária de imunidade de tributos federais de que trata a alínea c do inciso VI do art. 150 da Constituição Federal não está observando requisito ou condição previsto nos arts. 9º, § 1º, e 14, da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional, a fiscalização tributária expedirá notificação fiscal, na qual relatará os fatos que determinam a suspensão do benefício, indicando inclusive a data da ocorrência da infração.
(...)
§ 5º A suspensão da imunidade terá como termo inicial a data da prática da infração.”
Entretanto, não lhe assiste razão neste ponto. Com efeito, os fatos que ensejaram a lavratura da Notificação Fiscal foram basicamente:
i) a participação do impetrante em quadro societário da empresa OLYMPO, de finalidade lucrativa, de forma contínua, desde a sua constituição em 2004;
ii) o perdão da dívida da empresa OLYMPO, em 22/10/2010, no valor de R$ 939.658,51 (novecentos e trinta e nove mil, seiscentos e cinquenta e oito reais e cinquenta e um centavos). Veja-se: (evento 1, OUT5, fls.6/9)


(...)

Portanto, a infração à legislação que ensejou a fiscalização não foi exclusivamente a integralização do capital da empresa OLYMPO e a transferência de recursos para custear suas despesas, como alegado pelo impetrante, mas a participação do quadro societário desta empresa continuamente desde a sua constituição e o perdão da dívida ocorrido em dezembro de 2010, ocasião em que houve a transferência, em definitivo, da titularidade dos recursos do impetrante para terceiro.
Tendo em vista que o ADE 46/2015, que suspendeu o benefício de isenção do impetrante, foi publicado em março 2015, constata-se que não se implementou o quinquênio decadencial na hipótese dos autos.
Superada a alegação de decadência, o impetrante sustenta que a fiscalização partiu de premissa equivocada para concluir que houve infringência à legislação pertinente. A uma, porque os investimentos realizados na OLYMPO estariam em linha com os seus objetivos sociais; a duas, porque inexiste vedação legal à participação de entidades sem fins lucrativos em sociedades simples constituídas nos termos dos arts. 997 e seguintes do CC.
Aduz que o artigo 5º do seu Estatuto Social, vigente durante o ano-calendário de 2010, lista as seguintes atividades como integrantes dos seus objetivos sociais: (evento 1, OUT5, fls.31/55)
“h) adotar medidas que se façam necessárias para constituição de pessoas jurídicas de direito privado, sempre de fins não lucrativos, com sede e foro na Cidade do Rio de Janeiro, delas participando, sempre como cotista ou associado majoritário e reservando para si a administração e a gerência de tais entidades, de forma exclusiva em decorrência de exigência contida em normas emanadas do CIO, da ODEPA ou da ODESUR, ou a constituição de outras instituições desde que não contrarie o Código Civil Brasileiro, nem a legislação ou as normas das entidades internacionais antes referidas;
(...)
k) licenciar a quaisquer terceiros, dentro ou fora do território brasileiro, as marcas de sua titularidade registradas nos organismos nacionais e internacionais competentes e/ou as marcas, cuja titularidade lhe for cedida ou transferida, de modo a gerar as receitas objeto do idem d, do art. 46 deste Estatuto.”
E que o artigo 46, referido na alínea ‘k’ acima transcrita, estabelece o seguinte:
“Art. 46. A receita compreenderá:
(...)
d) as rendas patrimoniais e as resultantes de contratos de promoção e de comercialização, de atividades de exploração e licenciamento de suas marcas;
(...).”
Sustenta, nesta linha, que há previsão expressa do Estatuto para a criação de duas sociedades distintas (pessoa jurídica sem fins econômicos; e pessoa jurídica em geral), não havendo, portanto, qualquer vedação à criação de sociedade com fins econômicos. Dessa forma, a constituição de outras pessoas jurídicas e o licenciamento a quaisquer terceiros das marcas de sua titularidade e/ou aquelas que lhe forem cedidas ou transferidas, de modo a gerar as receitas necessárias às suas atividades, inequivocamente, fazem parte dos seus objetivos sociais.
No ponto, contudo, é correta a ponderação da apelada:
“Ora, se a primeira opção se refere à pessoas jurídicas sem fins lucrativos e a segunda estivesse tratando da mesma questão, isto é, da classificação segundo o critério da existência ou não de finalidade lucrativa, o dispositivo em questão seria absolutamente inócuo. Se o raciocínio desenvolvido nas razões de apelação estivesse correto, seria como se o Estatuto Social dispusesse que o Apelante poderia fazer algo ou não fazer, ou seja, importaria na retirada de todo e qualquer conteúdo que se pudesse atribuir ao referido dispositivo estatutário”.
Portanto, a simples integração e permanência do impetrante no quadro societário da OLYMPO, sociedade empresária com finalidade lucrativa, de fato, já era suficiente para caracterizar o desvio dos recursos da manutenção e desenvolvimento dos seus objetivos sociais.
Cabe salientar, ainda a este respeito, que o impetrante tem razão quanto às entidades sujeitas à Lei no 9.532/97 poderem ter participação societária em outra pessoa jurídica. De fato, é irrelevante para fins de fruição da isenção e, portanto, não importa na perda do benefício a entidade beneficiada desenvolver atividade econômica (seja mediante investimento no mercado financeiro ou em outras pessoas jurídicas), desde que o eventual superávit seja destinado integralmente à manutenção e ao desenvolvimento de seu objeto social.
Entretanto, no caso, como visto, a inteligência do Estatuto aponta em sentido contrário. Mas ainda que se entendesse que o Estatuto não veda a constituição de pessoas jurídicas com fim lucrativos (como alegado pelo impetrante), observa-se que, segundo o artigo 2º do contrato social da sociedade empresária OLYMPO, os recursos por ela auferidos em decorrência do exercício de suas atividades seriam apenas preferencialmente aplicados na consecução de seus objetivos sociais, o que afasta, portanto, a alegação de que os recursos estariam sendo aplicados integralmente na manutenção e desenvolvimento dos seus objetivos sociais, dando brecha para desvios deste fim, considerando que, além do impetrante (COB), outros dois sócios fazem parte do quadro societário da OLYMPO: a Confederação Brasileira de Remo e a Confederação Brasileira de Esgrima. (evento 1, OUT27, fls.11/19)
O impetrante alega, ademais, que o perdão da dívida:
(i) não é uma infração capaz de determinar a suspensão da isenção, nos termos do art. 32 da Lei 9.430/96, porquanto seria a “saída” de recursos do seu caixa para outra empresa que importaria no reconhecimento de eventual desvirtuamento de seu objeto social, e não o posterior perdão desta dívida; e,
(ii) não está inserido no rol de vedações impostas às entidades isentas pelo art. 12 da Lei no 9.532/97, logo seria flagrantemente ilegal lastrear a Notificação e o ADE nº. 46/2015 sob esse fundamento.
Contudo, no ponto também não lhe assiste razão.
Com efeito, o perdão da dívida representa transferência indireta de recursos do impetrante para a aludida empresa e, consequentemente, desvio, ainda que parcial, de recursos que deveriam ser aplicados integralmente na manutenção e desenvolvimento de seus fins institucionais. Neste contexto, é relevante a argumentação exposta no Parecer Conclusivo nº 111/2015 (evento 14, OUT48):
“O perdão dessa dívida tem por consequência a renúncia, por parte do COB, de recursos que poderiam ter sido revertidos para custear suas atividades sociais, mas que, ao invés disso, serviram para “inflar” os lucros da empresa Olympo Marketing e Licenciamento, da qual o COB e outros sócios detém 100% do capital social.”
Além disso, a Lei no 9.532/97 estabeleceu a obrigatoriedade de aplicação integral dos recursos do contribuinte na manutenção e desenvolvimento dos seus objetivos sociais para fins de gozo do benefício fiscal nela previsto, sem, contudo, discriminar todas as condutas que, em tese, seriam passíveis de caracterizar o descumprimento da referida obrigação, já que, por óbvio, isto seria impossível.
Isto posto, voto por dar parcial provimento à apelação do impetrante para anular a sentença e, prosseguindo na análise do mérito, com base no art. 1.013, §3º, IV, do CPC, voto por julgar improcedente o pedido, denegando a segurança.